Último Trem

Diego Paiva
4 min readAug 4, 2023

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Último trem do Ramal Gramacho.

Um cara deitou no banco, colocou os pés em outro e fez do vagão um quarto. Porque é. Talvez ele diariamente passe mais tempo naqueles vagões do que na cozinha dele, tendo tempo de fazer uma refeição.

Dez e meia da noite de uma sexta feira.

Só havia um tipo de pessoa naquele lugar, o Suburbano.

Porque metrô é ensaboado, tem em Irajá mas tem também em Copacabana.

O trem não, parceiro. O trem é puritano. Ele olha para o que tem depois da Central do Brasil e diz “parei”. O trem só aceita passar por onde o pastel e o caldo custam quatro e cinquenta. Não chega nem perto de uma caldodecanateria com caldo diet zero calorias e pastel de soja frito em óleo de unicórnio.

E lá só tem a gente. Quer dizer, as vezes tem outros, quando o Nilton Santos tem evento, quando bloco de carnaval moderninho quer pagar de descolado, quando rola o trem do samba e as pessoas não usam o trem, elas fazem o trem pelo trem.

A gente faz por nós.

É no trem que as pessoas simplesmente puxam assunto. Vai puxar assunto no metrô. Só quem desce na Central mesmo.

É no trem que os ambulantes se encontram e conversam. O ambulante cansado senta do teu lado e explica que tá ali pra garantir algum, porque já passou em 5 concursos públicos e ainda não foi convocado para nenhum. Ele tava indo pra Saracuruna, e quando ouviu que eu estava voltando de um trabalho em Itaboraí resolveu dizer “Tá maluco, é chão!”. Porque é. Ele pode dizer. Vai alguém do Flamengo me dizer que é chão. Vai ver o que eu respondo.

É no trem que o malandro inventa um assunto pra puxar do nada uma conversa com a moça de biquíni rosa e cadeira de praia na mão, termina com “não é, nem?” e ela sorri.

E estava eu lá distraído, mexendo no celular quando fui procurar que estação estava, para saber o quão longe estava de Le Braux Du Pinè, porém os mais chegados podem chamar de Brás de Pina mesmo. Mas as coisas não vem fáceis aqui, o trem falava no seu painel de led “Próxima estação, Oficina”.

Mas o subúrbio entrega a dica. Surgiu no céu a Igreja da Penha. Eu lembro a primeira vez que eu vi a Igreja da Penha de noite, eu tinha no máximo sete anos. A igreja iluminada naquela montanha escura parecia sobrevoar a noite carioca. E tive essa sensação boa de novo hoje. O vidro sujo do vagão fez tudo ficar desfocado, e de novo a Igreja flutuou no céu. O autêntico Castelo nas Nuvens que a Cosette canta em ‘Les Misérables’. Foi só para me avisar que faltavam duas estações.

Não é exatamente que eu ame o subúrbio, é que eu sou o subúrbio. Eu sou como sou por causa dele e ele é como é por causa de mim e de todos nós. O pastor da igreja evangélica que está 10 metros de um templo 20 vezes maior da IURD, o traficante, a vendedora de sacolé e eu. Cidades não são pedaços de terra, são pessoas em pedaços de terra.

Não me vejo sendo como sou na Zona Sul. Talvez no Catete, que é tipo o consulado suburbano no Sul. Mas chegou em Botafogo eu viro um estrangeiro. Se for até o Leblon já viro alien.

Esse texto todo é para explicar que eu peguei uma van em Itaboraí e só com dez minutos de viagem pegaram meu RioCard e não tinha saldo, na correria esqueci de carregar. Dinheiro nenhum na carteira. Em vez de me mandar descer em plena BR o motorista combinou que eu tirasse a grana na central.

Mas eu desci, saquei a grana e quando dei a volta pra te esperar no ponto inicial onde já tinha uma fila gigante te esperei, esperei e nada. Não sei se você não tinha passado ou se de tão cheia a fila você resolveu lotar logo e partir.

Quem em sã consciência faria isso? Provavelmente você achou que eu nunca mais voltaria. Mas é suburbano com suburbano. Eu voltei e te esperei.

Não porque eu sou honesto, porque eu quero biscoito ou porque sou uma boa pessoa. Eu sou é um tremendo canalha. Eu não presto. Mas o mínimo que me resta é ser justo com quem me ajuda. Ou o mínimo de algo bom é ter honestidade com quem teria o direito de me largar na BR 101 sem dinheiro. Porque “gratidão” não é só uma palavra cult bacaninha para substituir “obrigado”.

E só não te esperei mais porque era o último trem.

E no último trem só tem um tipo de pessoa, o suburbano.

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Diego Paiva
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Written by Diego Paiva

Depósito de textos antigos e novos. Sem ordem cronológica, sem ordem temática, sem ordem de forma geral

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