Os Segredos de Céu Azul, um pequeno conto de terror de interior

Era uma vez uma relativamente nova cidade pequena chamada Céu Azul, onde muitas pessoas começaram a chegar fugindo de todos os problemas que grandes centros urbanos têm. Lotes foram capinados, casas e bares foram sendo construídos. Por mais que fossem pessoas muito diferentes entre si, havia ali um sentimento de começar algo novo longe dos problemas de sempre.
Cada um tem sua profissão, seus saberes, sua história, mas essa vila tinha uma característica peculiar: todo mundo ali gostava de se comunicar. E de tecnologia. Por isso, não foi surpresa nenhuma que o Pólo Tecnológico de Céu Azul tenha sido o local que mais se desenvolveu na cidade. É por isso que a SinapSYS, nascida nesse Vale do Silício rancheiro, se alavancou e tornou possível uma comunicação naquela vila que dispensava aparelhos. Seu chip era parte integrante da cabeça dos habitantes. As pessoas poderiam comentar e os chips uns dos outros se comunicavam e logo estavam de repente a cidade inteira dentro do mesmo assunto.
Aquilo não era mais a comunicação da vila. Era também a vila. Seu jeito de se comunicar e interagir era já parte integrante do que a cidade era. Alguém queria compartilhar o que estava bebendo e isso alavancava uma onda em que logo todo mundo compartilhava sua bebida, trocavam receitas de drinks numa grande conversa ao mesmo tempo fracionada e integrada, até que outro assunto emergia. Eram tempos simples. Nunca foi um comercial de margarina, mas podemos dizer que sempre foi a sala de roteiro de um comercial de margarina.
Essa simplicidade e o constante aumento dos problemas da cidade grande faziam cada vez mais pessoas migrarem. Novos lotes sendo capinados, novas ruas abertas. Já não dava mais para percorrer todas as estradas em um único dia, mas ainda havia algo pulsante na praça da matriz, onde todos iam. Ainda havia um espírito de se comunicar, de falar e ser ouvido. É claro que mais pessoas numa cidade exigiam cuidados extras, aumentar o sistema de esgoto, colocar um portão de acesso no parque, e um certo receio de desconfiança porque sabe aquelas pessoas ali na mesa ao lado no bar? Olha, eu lembro de uma delas revirando lixo e rodando os sacos para espalhar detritos na rua quando morava na cidade grande, então o que essas outras pessoas já não fizeram também? Mas ainda eram pessoas que estavam descobrindo que a cidade era outra, outra dinâmica, outra velocidade.
Só que mudar exige um tempo diferente de cada um, e cada novo habitante tem consigo suas aspirações e costumes também. Há quem se incomodou com as casinhas de telhado clássico, afinal, tinha na cidade grande um apartamento de 3 quartos no centro do lado de todos os melhores lugares, não ia se contentar com aquele terreno básico, e ainda teria que construir a casa toda de novo. Quando percebeu que os móveis antigos não cabia na casa nova, abandonou a cidade nova e voltou pra velha, respirando um ar poluído, porém familiar.
Um belo dia, quando ninguém esperava, alguém fez uma pixação no quadro de avisos do clube comunitário, logo ali do lado do bairro boêmio da cidade, pulsante de noite, com suas ruazinhas cheias de curvas que terminavam num platô que tinha uma vista linda, o Mirante do Quem Viu, Viu. Só que não havia câmeras. A cidade tinha uma excelente infraestrutura de comunicação mas não havia previsto que certas pessoas gostariam de fazer coisas sem comunicar o que estavam fazendo. “A gente precisa de câmeras”. “Se a gente colocar câmeras vamos ficar igual a cidade grande”.
“Talvez já estejamos no caminho de se tornar a cidade grande”.
A partir dali um certo ar pairou diferente, como o capítulo 6 de Dogville. Há mais desconfiança, a praça da matriz não estava mais tão cheia, algumas pessoas só colocaram a cadeira na calçada de suas ruas e ficavam por lá. Sempre que alguém novo passava por aquela rua as pessoas nas cadeiras silenciavam. Eram muitos estrangeiros, mas que curioso é classificar alguém de estrangeiro numa cidade que só haviam estrangeiros. Nessa disputa de “sou menos estrangeiro que você” dedos foram apontados, acusações foram feitas e mágoas foram paridas, auxiliadas por corações partidos e até rixas de gangues da cidade grande sendo revividas, hora meio Mezzenga e Berdinazzi, hora meio Montague e Capulet e na maior parte do tempo Lado A e Lado B do Baile da Espuma do Morro dos Prazeres mesmo.
A história entra no seu segundo ato quando um demissionado da SinapSYS resolve criar um vírus para se vingar da empresa. Esse vírus infectou todos os chips da cidade e tinha um funcionamento incrivelmente simples e diabólico. Não havia mais diferença entre pensar e publicar, o chip agora colocava na rede tudo o que todo mundo pensava. Céu Azul de repente descobriu que a diferença entre o comunicado e o pensado era completamente diferente. Como em qualquer outro lugar bom ou ruim, aliás, mas a diferença de ver isso em prática muda completamente a experiência. Uns mais, outros menos, mas absolutamente ninguém passou imune a ter algum grau de mágoa com alguma opinião negativa.
As casinhas de tijolos crus ecológicos tipo adobe deram lugar a paredes de concreto com vergalhões reforçados numa tentativa de diminuir o alcance dos chips. Para que nada de ruim pudesse entrar também, mas principalmente para que nada de ruim pudesse sair e ganhar os ares de Céu Azul. A praça da matriz já apresenta sinais de ferrugem no parquinho. O Coreto da Virada Cultural já tem tinta descascando. Ao menor sinal de alguma possibilidade de dissonância as pessoas eram arremessadas das novas grades de ferro dos novos pequenos prédios de condomínio. Não se abrem nem os portões para tirar, usa-se logo uma catapulta, mais prático. Alguns espíritos mais criativos usam um estilingue gigante como os que o Coyote compra da ACME, mas o efeito é o mesmo. Muito de vez em quando alguns condôminos dão uma saída para o bar da cidade, e encontram moradores antigos, mas as festas e celebrações estão bombando mesmo é na área de lazer desses novos prédios. Pequenos sim, mas prédios, com seus muros e grades, com todo sentimento de clausura que um prédio demonstra mais que uma casinha de muro baixo que dá para se debruçar no parapeito e ver as modas. E os porteiros deles quase nunca tem trabalho, pois suas portarias quase nunca são abertas. Ninguém quer mais correr o risco de espalhar seus pensamentos atravessando o centro.
E assim como o inexorável e insidioso passar dos dias, Céu Azul é cada vez menos azul e, porque não dizer, cada vez menos céu. Ao caminhar pelas ruas, um estrangeiro (ou seja, qualquer um) vê as paredes lisas e só detalhes de jardins nas poucas frestas que as grades permitem. Agora o que se vê é uma versão Bonsai da cidade grande. Porque não dá para se livrar dos problemas da cidade grande quando eles vem na mala.