Sim, sua tia é fascista

Diego Paiva
5 min readOct 10, 2022

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Arte de Juliana Martinez Ronchesel

“Ah, mas ela é tão boazinha com os netos! Super simpática comigo! Eu não sei porque vocês ficam tentando classificar ela assim!”

A nossa distopia nos presenteou com uma discussão que, se não era inédita, era ao menos muito escondida. Sobre a sua tia ser fascista.

Aquela senhora amável, que te dá bom dia no elevador, que manda imagem de bom dia com o Smilinguido no Zap e que gostava de umas correntes de Chico Xavier falando de amor. Agora ela também perde tempo pra dizer que bandido bom é bandido morto na caixa de comentários do G1 e para se vestir de verde e amarelo pedindo mais armas sim. E o que é o mais impressionante: sem deixar de fazer nenhuma das coisas amáveis de antes.

Eu sei que isso pode causar algum tipo de confusão mental como se todos nós fôssemos Psyducks nessa grande Liga Pokemón chamada conjuntura brasileira.

Mas não, você não precisa ficar confuso.

E sim, a sua tia nunca teve (tanto) caráter (quanto você imaginou).

Tem uma frase muito bonita de um livro que diz assim: “O verdadeiro caráter de uma pessoa não está em como ela trata seus iguais, e sim seus inferiores”.

É lindo, né? Eu queria dizer que essa frase eu tirei da Bíblia, que está no novo do Karnal, ou vai lá, veio do Paulo Coelho, mas tirei de outro livro melhor, o “Harry Potter e o Cálice de Fogo”.

Nessa história o Harry e seus amigos tavam boladões porque um cara tratou eles com toda pompa e depois viram o mesmo cara pagando geral um elfo doméstico, que é um serviçal sem direito trabalhista nenhum no mundo deles, quase um MEI mágico. Mas para quem não conhece a história, é importante dizer que Harry é uma CELEBRIDADE no mundo bruxo. A maior de todas. Ele é famoso desde bebê, não buscou por essa fama, mas é. Todo mundo que vive nesse mundo sabe quem ele é. Todo mundo tende a bajular ele.

Pois bem, esse comparativo é importante para dizer que não adianta querer avaliar uma pessoa pelo amor que ela tem… pela família. Claro que amor à família é importante, mas se ele para por aí não é amor, é defesa. Se esse amor ao netinho passa também por uma vontade de apoiar chacinas onde seu netinho nunca nem chegou perto, talvez o que vocês chamam de amável vá só até a página três.

A real é que ela sempre teve essa vontade de eliminar tudo que ela considera diferente dela. É o isolamento, é a defesa “dos valores da família” para mascarar o verdadeiro sentimento, a vontade de evitar que a família dela sofra algum mal. E na irracionalidade dela, eliminar é mais fácil que transformar, porque só o que importa é aqueles que ela ama. O amor ao neto dela vem também da certeza que esse neto será um cidadão de bem como ela.

E o cidadão de bem, você sabe, odeia tudo aquilo que não é cidadão de bem. Ódio ao invés de diálogo. O cidadão de bem odeia quem questione seus hábitos alimentares sem deixar de questionar o dos outros; sua forma de comportamento sem deixar de criticar a filha da Sônia que toda semana vai pro baile; sua religião é intocável, mas os terreiros destruídos por fundamentalistas é “eles que lutem”. O cidadão de bem odeia até policial. Para o cidadão de bem o policial é o acessório de segurança que ele pode dar uma arma defasada, uma tática cega, um equipamento quebrado, apontar para a favela e falar: Vai lá, herói do povo brasileiro. Não é preciso questionar como as armas chegam com os criminosos, como as drogas chegam, quem recebe suborno para atravessar a fronteira. Só seguir ordens. Tudo que o cidadão de bem precisa é daquele policial voltando morto. Dá material pro Zap a foto do corpo e a pergunta “até quando vamos enterrar nossos policiais?”. Bom, até quando vocês perceberem o que estão fazendo. É mais fácil perguntar onde está o pessoal dos direitos humanos nessa hora do que parar e pensar “Fazemos isso tem uns 40 anos, por que não está dando certo?”

E tudo isso dentro da racionalidade do cidadão de bem é perfeitamente possível. Ele, para ele, é o bem. Porque só ele é o bem único. Não existe outro bem que não seja como ele.

Portanto, tudo que ele faz é o bem. Inclusive amar o neto entra como um validador desse bem. “Mas ele trata o neto com carinho!”. “Ela vai pra igreja sempre!”. “Ela doou um monte de roupa usada para a faxineira levar para a comunidade, como você pode dizer que essa pessoa é odiosa?”.

Sabe a frase do livro que eu citei uns parágrafo atrás? Quem falou foi o personagem Sirius Black. Um riponga de humanas que passou anos na cadeia por causa de um flagrante forjado, cumprindo a pena de um crime que não cometeu. De família rica, nobre, de bruxos de bem. Era o pária da família. Descobriu o que era ser periférico. Viu lá a galera que tratava ele de fina e nobre família bruxa como um marginal.

Nem falo de um pedestal. Apanhei bastante e fiz muita merda até me pegarem e didaticamente me ensinarem a diferença entre discurso e prática. Todo mundo é a tia fascista de alguém.

Mas não tenha dúvidas que apesar de tudo a sua tia te ama sim. Porque você é família. Porque ela lembra de como você era quando criança. É sério não é piada. Aquela pessoa que quer tanque de guerra apontando pra barraco te ama de verdade. Você é um igual. Isso não é antagônico, ela só decidiu que você “está do lado de cá”.

Quando falamos disso é importante sempre ressaltar que o fascismo enquanto ideologia não significa uniformes militares, desfiles de tanques e banda marcial. Enquanto ideologia o fascismo não precisa queimar uma pólvora, é só disseminar a ideia.

Não duvide do amor dela. E não duvide que ela sempre foi fascista, ela só encontrou um modelo político onde pode exercer isso finalmente em sua plenitude. É quase um alívio poder não fingir mais que tem caráter.

Boa ceia com a sua amável sanguinária. Feliz Natal.

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Written by Diego Paiva

Depósito de textos antigos e novos. Sem ordem cronológica, sem ordem temática, sem ordem de forma geral

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