Diego Paiva
8 min readAug 5, 2020

Vovó.

[capítulo do livro “Álcool”, ainda inédito]

Mamãe me vestiu com minha melhor roupinha, um vestido rosa que tinha um laço enorme nas costas, abriu a porta de casa e disse “vamos lá se despedir da vovó” e a minha primeira reação foi dizer “mas ela nem veio”.

A gente morava em Petrópolis e de vez em quando a vovó passava uns dias com a gente. Ela chegava cheia de chocolate de guarda-chuva, que era o meu favorito, me enchia de beijo e abraço. Perguntava das minhas bonecas, sabia o nome de todas decorada. “A Chica já casou?”, perguntava. Eu ria e dizia que não, ela ria de volta. Eu lembro também que a vovó conseguia dormir no sofá depois que acabava a novela, na cadeira em frente a mesa esperando a janta e uma vez eu ouvi a mamãe reclamar que ela tinha dormido sentada na privada.

O sono dela era pesado, a respiração era forte, ruidosa, difícil. Eu ficava observando aquele sono tremido, cheio de dificuldade. “Vovó, por que você dorme muito?”.

“É que velho dorme muito”, e me dava um beijo na testa. Eu sempre pensava nessa frase quando mamãe me acordava e me deixava bem irritada. Eu ficava querendo ser velha logo, para poder dormir muito.

Quando ela ia embora, mamãe sempre gritava pro meu quarto. “Vem se despedir da vovó” e lá ia eu descalça pra porta dar tchau pra vovó, que sempre se abaixava e me abraçava forte. Também dentro do carro eu via o tio André, que abria um sorriso largo dentro daquela barba grande quando me via e acenava pra mim. A vovó entrava no carro do tio André e eu ficava esperando eles desaparecerem na esquina.

Por isso que era estranho a gente estar no carro pra se despedir da vovó. Não tinha tio André, era eu e mamãe entrando na nossa Brasília. Naquela época a Brasília era pra mim o maior e mais confortável carro do mundo, mas eu só tinha entrado em dois carros: a Brasília e o Fusca do tio André.

Fomos descendo a Serra em direção ao Rio de Janeiro, e tudo aquilo era muito estranho e fora da rotina pra mim. Eu só via aquelas montanhas do alto da estrada em dois momentos: quando eu ficava doente e tinha que ir no Dr. Werner, que foi pediatra da mamãe, ou quando era Natal e a família toda ia pra casa da vovó comer um monte de comida diferente. Na estrada também a mamãe costumava fumar um cigarro atrás do outro, mas dessa vez estava quieta e só respondia secamente o que eu falava.

Quando a estrada terminou e a cidade começou, o carro passou por ruas que não eram o caminho da casa da vovó ou do consultório do Dr. Werner. Eu ainda sem conseguir encostar os pés no chão enquanto estava sentada no banco perguntei “mamãe, onde a gente está indo?”

Mamãe ficou um tempo em silêncio. Fez menção de falar algo, mas engoliu seco, ligou a seta, olhou o retrovisor e começou a fazer uma curva. Depois da curva ainda permaneceu em silêncio por alguns segundos a mais, quando finalmente respondeu juntando toda a coragem do mundo: “Jardim da Saudade”.

Era o nome de lugar mais estranho que eu tinha ouvido em minha vida. Como assim um jardim para Saudade? Que tipo de jardim era esse? Jardim é para planta, para flor… não é para Saudade! O que se planta num jardim que tem saudade? Sem dúvida alguma era o dia mais estranho até então da minha vida.

Quando a gente chegou eu vi que o jardim era imenso e tinha umas placas nele inteiro. Mamãe parou o carro perto de uma lanchonete e demos a volta na grade para chegar na entrada principal. Lá tinham umas portas e numa delas, escrito “Capela 2”, estava o tio André. Pela primeira vez na minha vida o tio André me viu e não abriu um sorriso largo. Ele até tentou, mas só conseguiu um leve sorriso. Logo depois de sorrir eu vi duas lágrimas caindo, uma de cada olho, que estavam vermelhos vivos. As lágrimas afundavam naquela barba espessa dele, e eu vi que a barba já estava brilhando de tantas outras lágrimas que tinham sido capturados por ela.

Foi a primeira vez que vi um homem chorar. Quer dizer, eu já tinha visto meninos chorarem, mas homem mesmo foi minha primeira vez. Eu nem sabia que homem chorava, achei que depois que um menino crescia ele não conseguia mais chorar. Ele e mamãe se abraçaram longamente. “Já estava na hora”, disse mamãe. “Eu sei, mas…”, e tio André não conseguiu terminar a frase. Se abraçaram de novo. Entramos na capela.

Ali tinham muitas coisas estranhas. Velas, flores, um cheiro diferente de mato e química. Eu vi um monte de gente que eu não conhecia e outras que eu não lembrava o nome mas reconhecia do natal na casa da vovó. E o mais estranho de tudo é que numa mesa enorme branca tinha uma caixa de madeira onde a vovó dormia dentro.

As pessoas todas cabisbaixas, tristes, silenciosas. Eu entendi que devia ficar em silêncio também porque vi que ninguém queria acordar a vovó. Eu até fiquei feliz por ela porque era a primeira vez que ela estava dormindo quietinha. Aquela coisa toda que eu não entendia direito finalmente fez bem para ela, vovó não puxava ronco repentino, não abria a boca e não parecia se engasgar ali. O que quer que tenha sido isso, estava dando certo.

Mamãe ficou um tempo do lado da vovó, parada, observando. Eu vi umas imagens, com porta retrato e tudo, que a vovó tinha colocado em cima do peito dela antes de dormir. Eu lembro que uma vez na casa da vovó aprontei para o porta retrato na estante e perguntei quem era. “É Jesus Cristo, amor”, respondeu vovó. Ela sempre falava dele, mas não sabia que gostava tanto que até dormiria com a imagem dele.

Ficamos um tempo lá. Volta e meia entrava uma pessoa nova, olhava pra vovó, abraçava mamãe e tio André, que estava sentado numa cadeira com algumas pessoas e ia lá ficar em silêncio. Volta e meia um falava mais baixinho com outra pessoa, que respondia também baixinho. Pelo visto, estavam todos empenhados em não deixar a vovó acordar.

A capela tinha uma janela que dava para rua, e foi olhando para ela que consegui ver quando um táxi deixou papai lá. Ele usava um terno preto e trouxe flores também. Quando ele entrou foi diretamente abraçar mamãe. Foi aí que mamãe começou um choro enorme, desabando naquele abraço. De todas as pessoas naquele lugar, mamãe parecia a mais controlada e tranquila. Todas as vezes que ela parecia ficar igual aos outros, ela olhava pra mim e voltava a ficar como estava antes, não deixando de fazer um cafuné em mim. A chegada de papai pareceu uma senha para ela, uma autorização.

Um padre entrou e todos lá começaram a ouvir o que ele dizia, coisas sobre esse Jesus Cristo e o pai dele. Depois ninguém mais estava preocupado com o sono da vovó, porque começaram a falar a mesma coisa juntos, repetindo o que o padre dizia. Mas ela não acordou. Papai foi procurar um orelhão e me levou no colo. Tirou duas fichas no paletó e ligou para a secretária, perguntando da agenda remarcada e coisas assim. Eu vi que tinha uma outra capela com pessoas tristes também, chorando e se abraçando como na que eu estava. Achei uma grande coincidência. Meu pai viu dois homens com macacão azul indo em direção à capela 2 e desligou rapidamente o orelhão e me levou de volta para mamãe. Os homens que estavam de macacão azul pegaram uma tampa de madeira muito bonita e colocaram em cima da vovó. Eu achei muito estranho, mas como ninguém protestou eu resolvi ficar quieta também.

Depois disso papai, tio André, três homens que não lembro direito e mais um homem de cabelos e bigode branco que uma vez acho que mamãe chamou de tio Mauro pegaram as alças daquela caixa de madeira e começaram a levar a vovó para fora. As pessoas foram acompanhando logo atrás.

Mamãe me levou no colo. Eu era um pontinho rosa num mar de gente vestindo preto. No caminho várias placas no chão, algumas flores, uma ou outra pessoa também caminhando como se não quisesse estar ali. Numa dessas placas tinha um buraco bem em frente e as pessoas pararam lá. Colocaram a vovó dentro daquele buraco e jogaram umas flores por cima da caixa. Os dois homens de macacão pegaram pás e começaram a jogar terra por cima.

Mamãe abraçou papai comigo ainda no colo. Ficamos nós três abraçados ali, enquanto ainda colocavam terra. Nada da vovó acordar. Quando ela saísse de lá teria que fazer muito esforço, mas absolutamente ninguém parecia se importar com isso. O abraço terminou quando tio André se aproximou e falou que precisavam ver a questão da casa da vovó. Mamãe disse que depois eles iam falar sobre isso, mas agora não tinha como. Tio André me deu um beijo e a barba molhada dele umideceu minhas bochechas.

Na saída daquele jardim estranho, mamãe entregou as chaves da Brasília pro papai e foi no banco do carona. Eu atrás como sempre. Deu pra ver o Fusca do tio André passar por nós e dar uma leve buzinada. Papai saiu com o carro. Ninguém ligou o rádio, ninguém falou nada. A única coisa diferente foi que mamãe finalmente abriu ainda mais o vidro do carro inteiro e acendeu um cigarro. Depois de um tempo de novas ruas eu reconheci a estrada onde começava a subida para Petrópolis e sabia que estávamos indo pra casa e eu poderia tirar aquele vestido que era lindo mas apertava um pouco. Foi naquela estrada vazia, sem som algum que não fosse o som do motor da Brasília que eu finalmente quebrei o silêncio e disse “a vovó consegue dormir em cada lugar, né?”.

Papai nem olhou pra mim, foi direto olhar para mamãe, que apoiava a cabeça na porta do carro. Ela nem desencostou da porta, só girou a cabeça até me encarar. Sorrindo enquanto os olhos ainda estavam vermelhos e marejados me disse “é mesmo né filha, ela consegue”.

Nenhuma palavra foi dita na viagem depois disso.

***

De vez em quando, naqueles momentos que a sala gira e eu perco o equilíbrio, caio do sofá diretamente na capela 2, eu de vestido rosa e adulta. Eu me culpo por não ter acordado a vovó. Me vejo ali em cima da caixa de madeira gritando “Acorda, vovó! Acorda!”. Eu fico brava porque ninguém tentou acordar a vovó. Eu me culpo por estar feliz dela finalmente dormir com tranquilidade. Sempre que a gravidade muda de sentido e me joga naquela capela eu sinto raiva de mim, da mamãe, do tio André e de todo mundo que não acordou a vovó. Talvez ela ainda estivesse aqui, talvez ela até me ajudaria a fazer o casamento da Chica. Nunca é para o quintal da casa de Petrópolis e para os abraços de despedida da vovó que a gravidade me leva.

É sempre para a capela dois do Cemitério Jardim da Saudade.

Diego Paiva
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Written by Diego Paiva

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